“Não dá pra morrer de H1N1 no século 21.” Assim Katia Martinez desabafou no Facebook no dia 10 de abril, dois dias depois da morte da irmã dela, Nadia Trost, e seis dias depois do falecimento de Ribamar Henrich Trost, marido de Nadia. O casal estava internado no Hospital Unimed de Rio Claro, cidade a 175 km de São Paulo, com problemas respiratórios graves.
Exatamente no dia 10, a Fundação Municipal de Saúde de Rio Claro soltava nota com o laudo do Instituto Adolfo Lutz sobre as amostras do casal: positivo para H1N1, vírus da gripe. A família não quis dar detalhes do ocorrido pessoalmente.
“Ninguém quer falar porque estamos vivendo um luto imensurável, chocante e trágico”, disse Katia à BBC, por mensagem.
O recolhimento é compreensível. Não apenas pelo abalo em função da perda repentina dos parentes, e por uma doença vista habitualmente como corriqueira, mas também pela superexposição do caso nas redes sociais. À foto de Ribamar e Nadia, tranquilos e abraçados no que parece uma comemoração recente, se juntaram áudios e comentários por escrito alertando ora para uma epidemia de H3N2, ora para variantes como H2N3, HN1N3 e gripe australiana, acrescidos da afirmação de que a vacina seria uma “arma química para exterminar os idosos”.
O lançamento da campanha nacional de vacinação contra a gripe, aliás, será no dia 23 de abril. Mas o Estado de Goiás, que confirmou 13 mortes por influenza até agora, se antecipou. No dia 13, sexta-feira, já aplicava as primeiras doses na população. O Estado de São Paulo, por enquanto, tem o maior número de óbitos na Federação: 14.
Até o dia 7 de abril, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde, foram registrados 286 casos de gripe em todo o país, com 41 mortes.
“No Brasil, circulam no momento apenas os vírus H1N1 e H3N2”, afirma Nancy Bellei, professora afiliada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultora em influenza para o Ministério da Saúde, referindo-se aos tipos de influenza A.
Sinônimo de gripe, a palavra “influenza” tem sido usada de forma geral no Brasil para se referir aos tipos A e B, que estão relacionados a epidemias. O tipo C é aquele mais comum, que causa apenas infecções respiratórias brandas.
O primeiro estaria mais ativo em Goiás, Bahia e Rio de Janeiro, enquanto o segundo se espraia pelo Estado de São Paulo – o que não significa que um não invada a área do outro. A infectologista explica que o H1N1 é o mesmo que deflagrou a pandemia de 2009, chamada à época de gripe suína. Já o H3N2 seria semelhante ao que atingiu o Hemisfério Norte na última temporada, infectando mais de 30 mil pessoas.
“Mas a vacina brasileira vai ser diferente da do Hemisfério Norte”, diz Bellei. “A nossa cepa de H3N2 é outra, por isso temos a expectativa de que a imunização será mais eficaz.”
Na vacina distribuída pela campanha também constará a cepa do vírus B Yamagata, que imuniza contra influenza B. Já em clínicas particulares, o produto será quadrivalente, contendo também o B Victoria.
Em relação à diferença entre a imunização na rede pública e privada, o infectologista Matias C. Salomão afirma que a vacinação na rede pública já cobre a maior parte dos casos, e que o gasto extra para distribuir gratuitamente a dose quadrivalente não compensaria pela proteção. E o H2N3 e o HN1N3? “Isso é bobagem, não tem esses vírus”, enfatiza Bellei, ressaltando que eles sequer existem. “O pessoal deve ter se confundido ou então distribuiu essa notícia de má-fé.”
NOMENCLATURA
Os nomes das gripes têm lá seu código, como explica Salomão. Os vírus da influenza A, por exemplo, são classificados conforme suas glicoproteínas de superfície, a hemaglutinina (H) e a neuraminidase (N). Os números que se seguem às letras correspondem ao tipo de glicoproteína correspondente. Em textos científicos, não raro se veem nomes de influenza expandidos. A/Michigan/45/2015 (H1N1) pdm09 significaria Vírus tipo A, descrito em Michigan, da linhagem 45, descrito em 2015, subtipo H1N1, que circulou na pandemia 2009. B Yamagata e B Victoria, portanto, indicam em quais cidades os dois vírus foram descritos. São conhecidos 18 subtipos de H e 11 subtipos de N. “Os subtipos H1, H2 e H3 costumam ser transmitidos entre humanos”, diz Salomão.
Já H5, H6, H7 e H9 são esporádicos e, por esse motivo, mais perigosos. “O fato de grande parte da população não ter sido exposta a um tipo de vírus anteriormente aumenta a chance de ocorrer uma pandemia”, alerta o infectologista.
Além disso, existem as mutações, bem mais constantes nos A que nos B. O tipo B também só afetaria humanos e focas, enquanto o A passeia entre circula e mamíferos. O H7N7 engripa cavalos, por exemplo. O H13N2, baleias. O H1N1, patos, porcos… e humanos. “Tomar a vacina quadrivalente, que inclui o B Victoria, aumenta a cobertura, mas de forma geral os vírus B não costumam dar tanta complicação quanto os A”, acrescenta Salomão.
A quem se queixa de adoecer logo depois de tomar a vacina, o médico lembra que, no inverno, existe a concomitância de outros vírus respiratórios, como o sincicial e o rinovírus, não presentes na vacina disponível e que podem infectar um recém-imunizado.
Para se prevenir de forma mais ampla, recomenda-se lavar as mãos com frequência ou higienizá-las com álcool em gel, cobrir o nariz com um tecido ao espirrar ou tossir, evitar o contato com pessoas gripadas, limpar maçanetas, bancadas, utensílios de cozinha e brinquedos com água e sabão. Crianças com menos de 5 anos, idosos, grávidas e pessoas com imunidade baixa também devem evitar aglomerações.
SINTOMAS
As manifestações sintomáticas da H1N1 e da H3N2 não diferem muito, segundo os infectologistas. Coriza, tosse, dor muscular (mialgia), dor de garganta e febre costumam estar presentes. E tanto uma quanto outra podem levar à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que ocorre quando uma infecção bacteriana acomete as vias aéreas inferiores, causando pneumonia. De todos os casos de gripe, somente os de SRAG são notificados à vigilância epidemiológica. Salomão afirma que a pneumonia causada pelo H3N2 afetaria mais crianças e idosos, enquanto a do H1N1 prevalece em outros grupos de risco, como gestantes e obesos. Em ambas, o diagnóstico tardio pode ser fatal.
A morte dos dois rio-clarenses se junta às de mais 39 pessoas que teriam sucumbido à influenza no Brasil desde o começo do ano. De acordo com o último boletim do Ministério da Saúde, 16 desses casos decorriam do vírus H1N1. Dessas 41 pessoas, 31 apresentavam pelo menos um fator de risco para complicação, como pneumopatias e cardiopatias, e cerca de 30% do total fez uso de medicamento antiviral (Tamiflu) por volta do quarto dia.
No entanto, o Ministério recomenda que ele seja ministrado nas primeiras 48 horas após o diagnóstico da SRAG. “Depois desse período, a eficácia do Oseltamivir ou Tamiflu cai”, diz Salomão.
A faixa etária dos pacientes gira em torno dos 57 anos, idade de Ribamar Henrich Trost. Nadia, a esposa, tinha 54. Os principais sintomas da doença são falta de ar, chiado no peito, tontura, tosse com catarro amarelado e/ou febre que não cessa. Se a febre, ainda que baixa, persistir por mais de sete dias, com dores musculares, coriza e tosse, é recomendável que se procure o pronto socorro. “O fato de ficar indignado com mortes por gripe procede no Brasil porque a nossa cultura em influenza é muito recente”, afirma Bellei. “Só começamos a pensar e falar em gripe depois da pandemia de 2009.”
No ano passado, o Brasil registrou 498 mortes por influenza.
Bellei lembra que, todos os anos, morrem de efeito direto do vírus cerca de 650 mil pessoas em todo o mundo, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde. Só nos Estados Unidos, oscilando ano a ano, seriam de 140 mil a 710 mil hospitalizações em função da gripe, com 12 mil a 56 mil mortes. “O fato é que, a despeito de tratamento, a despeito de UTI, a despeito de intervenções, a gente tem essa mortalidade todos os anos”, diz a infectologista.
O número poderia ser maior, afirmam especialistas, não fosse o surgimento de vacinas e de antibióticos que pudessem tratar infecções secundárias provocadas por bactérias, por exemplo. Ecoam entre os infectologistas pandemias históricas de influenza, como a de 1918, que matou pelo menos 50 milhões de pessoas no mundo (só a Índia perdeu 16 milhões de vidas), muitas delas adultos jovens, entre 20 e 40 anos.
O centenário do que foi chamado “o maior Holocausto médico de todos os tempos” tem sido lembrado mundo afora. O site do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), agência do Departamento de Saúde americano, traça uma linha do tempo do vírus casada com a da Primeira Guerra Mundial.
A concentração de pessoas no mesmo lugar e o movimento global das tropas contribuíram sobremaneira para espalhar o patogênico. Somente nos Estados Unidos, morreram 675 mil habitantes por causa da moléstia. O vírus em questão já era o H1N1 – embora provavelmente um pouco diverso do que circula hoje em dia. [Fonte: BBC e Diário da Manhã]